Por George W de B Cavalcanti*
O momento é este, no qual o meu pensar encontra-se razoavelmente preservado ante o burburinho da feira livre que semanalmente se instala no entorno da minha morada. Resguardado por altas e pesadas portas de maciça madeira de lei desta casa antiga, na qual há mais de uma década habito, eu estou sentado em uma cadeira em forma de concha com assento de treliças tubulares de plástico encimado por fina almofada. Não é propriamente um conjunto muito estético e confortável, mas suficientemente aconchegante para acolher reflexões compulsivas em uma manhã de outono nordestino.
Por trás de mim está a parede externa que me separa do nosso quintal, na qual, a alguns palmos acima da minha cabeça estão dispostos os dois respectivos janelões com basculantes de vidro estampado. Relevos em forma de escamas nas vítreas lâminas que as torna quase foscas, mas, transparentes o suficiente para deixar passar em profusão a luz de mais um dia que se inicia neste rincão interiorano. Ainda reduto da impertinente “açucarocracia” alagoana, como um dos muitos renitentes feudos incrustrados nas entranhas deste país continental. Uma espécie secessão por uma cultura própria, e indiferente à modernidade ora alcançada pela maioria da federação que segue em afirmação da cidadania.
As paredes são grossas, algumas ainda originais e erguidas pela união de grandes e pesados tijolos com argamassa de barro massapê e óleo de baleia. Alvenaria disponível na época de sua construção, e muito provavelmente erguidas pelos escravos dos antigos senhores endinheirados da região. Mas, uma de suas vantagens é o maior isolamento térmico que proporcionam, para me preservar do forte calor que se insinua para o clima ameno que chega com as chuvadas do período invernoso que se aproxima. Quando então marcam presença pelo espaço doméstico as indefectíveis goteiras, a escorrer das grandes telhas de formato irregular. Visto que, sabidamente feitas proporcionais a variado formato de coxa - e daí o termo pejorativo popular - dos homens que então as moldavam; na ausência da disponibilidade das posteriores e padronizadas fôrmas de madeira.
A persistente brancura da cal com cola recobre o espesso reboco até as bordas do telhado - este, sustentado por forte madeiramento já não incólume ao ataque de cupins - dá tom monocromático ao ambiente do cômodo em que estou. Assim, é muito favorável ao fulgor da luz do arrebol que me induz à reflexão e convida-me a escrever, quando envolvido desde cedinho pelo rebatimento luminoso das cúmplices paredes. Certamente esse inspirador conjunto de aspectos me protege um tanto do desconforto provocado pelo meu virtual “emparedamento” socioeconômico conjuntural. O qual, no dizer de um amigo meu, "ata-me pés e mãos" e inviabiliza muitos dos meus ideais e sonhos, há muito legitimamente acalentados. Uma espécie de garrote existencial atado pela rejeição da elite local aos frutos do intelecto; e, que traduz a mentalidade de uma gente que até parece esquecida no tempo em seus imobilizadores fatalismo, determinismo e conformismo.
Também sei que, convivo intimamente desde pequenino com este meu tipo de aguçada percepção da realidade; que se me aflora e há tempos descrevo. Mesmo nessa espécie de coletivo assédio moral por discriminação passiva, impingida ao renovador pelo comportamento monitorador e manipulador das toscas lideranças; porque preconceituosas e grosseiras. Estas, a cada dia que passa mais rotas pela ação da roda da história; a qual, não gira para trás e nem no mesmo lugar. São identificaveis claramente nos redutos provincianos do nordeste brasileiro ainda refratário à equalização, ao ritmo de progresso e desenvolvimento que ora permeia o país e consolida os elevados interesses da nacionalidade. Há historicamente uma perversidade cínica e monstruosa nessa concentração de renda, e nesse estímulo à vassalagem em troca de benesses a contumazes bajuladores de sempre. Estes, que o são até por falta de alternativa econômica local para sustento das suas famílias e custeio da educação dos filhos.
Aconteceu que, mediante o conhecimento acessado e saberes acumulados, esta percepção enseja-me apreender a revelações, estagnações, distorções e revoluções da realidade; tão sistêmica quanto universal e cósmica. É como se eu houvera nascido sem escamas na compreensão e no discernimento, que parecem a muitos estancar-lhes o pensar reflexivo e concomitante sobre o imanente e o transcendente. E, tenho a forte impressão de que isto me veio junto com os meus primeiros lampejos poéticos, por mim soletrados mesmo antes da minha juventude. Um ponto de vista, ao que me parece ainda pouco usual pelos patrícios locais, ainda avidamente imersos no trivial e corriqueiro; para o soberbo regozijo de alguns privilegiados inconsequentes. Esse abismo estrutural e cultural endêmico que solapa o social desde suas ideias e que rotineiramente me impõe alternância entre angústia a gratificação ao escrever.
Em determinado momento das minhas inquirições a respeito da realidade sou levado ao exercitar filosófico na busca de causas primeiras e fins últimos desse estado de coisas. Até que, adoto a ousadia de uma perspectiva de equidistância das fogueiras das vaidades humanas, e me aproximo do encantamento da ternura que há na beleza das coisas coletivamente boas. Uma consequência natural da constatação da fractualidade que há na realidade sistêmica que plasma o meu entendimento. No sentido de que, similarmente aos luzeiros que rutilam no firmamento, somos usinas térmicas de processamento energético. Ou seja, essencialmente e à nossa maneira somos uma espécie de estrela que, tipicamente quando em estável equilíbrio existe unicamente para transmitir calor e luz, e, assim, favorecer o surgimento e manutenção da vida; muito principalmente da vida inteligente - e, vida em abundância.
Metaforicamente colocando, decerto que analogamente nos diferenciamos quanto à idade, forma, condições, grandeza e efeito em determinado espaço e por um limitado tempo. No qual, repercute toda a nossa radiação luminosa ou que nos abrevia pela aproximação a algum sumidouro de energia e matéria; o cientificamente denominado buraco negro. Evidente que, existimos também para a possibilidade de termos durante a nossa vida a nossa própria espécie de sistema planetário humano com mais ou menos satélites naturais. São pessoas, outras formas de vida, objetos e realizações que nos orbitam, e que interagem conosco e entre si durante toda a nossa existência; nisto incluindo as eventuais visitas tangenciais ao nosso universo. Lembrando que, nessa dinâmica existencial não se exclui a choque com outras entidades do cosmos social; com, digamos, outra humana estrela que esteja instável e errante.
Avalie – aplicando à mútua observação humana - o fenômeno oticamente constatado da intermitência do brilho das estrelas mediante o efeito da nossa atmosfera. Adite a esta o sentido emocional, quando se interpõe entre o sujeito e o objeto, entre o observador e o observado; enfim, entre estrelas que se observam mutuamente. Comumente o resultado obtido não é dos mais fidedignos e confiáveis, se não nos encontramos em um espaço exterior; quem sabe sentados em um pedra na lua, imaginemos. Porque, ao nível da superfície terrestre geralmente não nos percebemos como realmente somos; senão mutuamente apenas um brilho ofuscado da luminosidade alheia. Assim, entendemos que ente nós humanos, a depender dos nossos "ventos solares e de eventuais condições atmosféricas", o que captamos uns dos outros é apenas o tremeluzir das nossas mútuas emissões luminosas.
Imagino que melhor seria se, em algum momento, todos tivessem a oportunidade e coragem de vivenciar e apreender tal ensejo de expansão de consciência. Até porque, nos parece que a maioria continua e muito provavelmente continuará a dormir para a realidade em expansão, enquanto vive; ou pelo menos imagina viver. Pelo que, seriam bisonhamente apenas uma estrela que não deu certo - ou, pelo menos não da melhor forma - no favorecimento da vida e da vida inteligente. Alguém que, apenas gravitou e que não internalizou a um momento como este no silêncio de paredes caiadas. Quando, por acaso ou busca, é favorecida a sensibilização e eclosão de melhores expectativas. E então, o contemplar mental do brilho de outra humana estrela; o seu tremeluzir, transcende o simples significado desta palavra elegante e cósmica.
(Ilustrações - fonte: Google Imagens)