Por George W B Cavalcanti
Cada povoado, lugarejo ou cidade por mais simplória que seja tem lá os seus, costumes, tradições, tipos humanos e cenas pitorescas – e também suas ‘esquisitices’ – marcantes e inesquecíveis. Assim é que, no pequeno burgo no qual vivi a infância e pré-adolescência nas décadas imediatamente subseqüentes a meados do século passado, a drogaria do meu pai foi terreno fértil a cenas memoráveis –; meu pai que, para os íntimos, modestamente denominava seu comércio de: “uma pequena botica de vender garapas de curar gente”.
Era uma daquelas tardes de outono, quentes, letárgicas e abafadas por nuvens, pesadas e indecisas, a ameaçarem o típico marasmo das horas que entremeavam o burburinho das manhãs de ‘feira livre’ no entorno. Sensação ampliada pelo mormaço que parecia entorpecer a todos e deixar – junto com o cheiro dos remédios – toda a equipe de funcionários praticamente sonâmbula. E, também pelo fato de que o nosso prédio comercial se situava – mais central impossível – junto à praça da igreja católica matriz com o seu dolente sino; percebíamos marcantemente estes contrastes no cotidiano.
O expediente assim prosseguiria não fora a repentina chegada de um suarento cavaleiro campesino; tipo que, na época, era jocosamente chamado pelos citadinos de “matuto das brenhas”. O qual sem demora apeou-se amarrando o resfolegante cavalo em uma das argolas de ferro afixadas e disponibilizadas para tal junto à borda da calçada que nos dava acesso. E, recompondo-se, chamou para o canto do balcão o ‘cochilante’ atendente – escalado pelo costumeiro rodízio da equipe naqueles dias de pouco movimento – e, num sussurro, discretamente solicitou-lhe um sigiloso produto.
O balconista até então entorpecido pelo mormaço e o peso do feijão no ‘bucho’ – associação que é um poderoso sonífero –, despertou e, rodopiando nos calcanhares voltou-se para o interior do recinto, pasmo. A tal ponto que, o antes loquaz vendedor que conhecia de cor o estoque, pela primeira vez ‘gaguejou’ o nome de um produto. E, com uma patética expressão estampada no rosto emoldurando o sorriso sem graça. A seguir engoliu a seco contendo-se e fez vazar algum som pelo canto da boca –; e, o que se ouviu foi o seguinte: “o homem está pedindo um frasco de SARTA PRÁ RIBA DO BICHO”!
Àquela altura o pessoal todo, tentando segurar o riso a todo custo, acudiu em massa para tentar decifrar o medicamentoso enigma; pois, além de socorrer o colega, buscavam manter o brio profissional – mas, segui-se o inevitável ‘bochicho’ e a crescente irritação do freguês. E nós, mais ao fundo, só víamos a formação de um cerco humano no balcão enquanto um par de mãos agitadas sobressaia sobre as cabeças. E, não demorou muito para ecoar a voz do irredutível solicitante que, aos berros exigia repetidamente; “chamem ‘seu’ Duvá, chamem ‘seu’ Duvá!” –, como em ‘matutês’ pronunciava a (senhor) Edward, o nome de meu já falecido e saudoso pai.
Vendo o experiente ‘boticário’ que a tempestade outonal ameaçava cair-lhe com todos os trovões e raios dentro do seu comércio e sobre seus negócios apressou-se em intervir e, em tom protocolar, argüiu sobre as características do medicamento àquele que em meio aos demais já estava na ponta dos pés e com o dedo em reste. Perguntou-lhe sobre a aparência e indicação do produto. Ao que o tipo não contou conversa e foi logo falando em tom conciliador: “óia seu Duvá mi adiscurpi, mai é uma ‘meisinha' (remédio) da cáxa marela cuma cinta azú nu meio, i, quiá cumade Zefa lá da ‘zona’ diche quí cura inté furunco, sífri e quaiqué reima nu sangui -; duença du múndu, u sinhô cumpriende né...?”.
Serenamente meu pai foi às prateleiras e seus conteúdos que minuciosamente conhecia e voltou trazendo o polêmico e tão procurado produto fitoterápico, em cuja embalagem se lia claramente: ‘SALSAPARRILHA DO laboratório BRISTOL – o depurativo do sangue!’ A surpresa foi geral, exceto para aquele de quem finalmente se escutou o vitorioso e orgulhoso comentário: “é pru isso quêu só goxto de falá logo cum santu grandi!”
Finalmente satisfeito o nosso visitante saiu à calçada, estalando na calça de brim ‘azulão’ a ‘tabica’ de cipó-fogo que mantinha sempre consigo. E, olhando o céu buscando assuntar o tempo, desamarrou a montaria que o trouxera e nela subiu; e, cravando-lhe as esporas troteou ligeiro, sumindo na esquina da ladeira que o levava de volta ao campo.
NR: Salsaparrilha; outros nomes: Smilax médica, Smilax officialis, Smilax syphilitica, Smilax peruviana, Monoecia hexandria; da família das Liláceas, tem ainda outros nomes: sarza, salsaparrilha-das-boticas, salsa-americana. No Brasil há muitas espécies de salsaparrilhas conhecidas pelo nome de japecanga. É uma planta depurativa, diurética e sudorífica. E aplica-se nas enfermidades venéreas, exantemas, gota, reumatismo e sífilis.
Fonte: BALBACHAS, Alfonsas. As Plantas Curam, 7ª ed. São Paulo - SP. Ed. Missionária A Verdade Presente – 1959.
União dos Palmares - AL, 09 de novembro de 2008.
Cada povoado, lugarejo ou cidade por mais simplória que seja tem lá os seus, costumes, tradições, tipos humanos e cenas pitorescas – e também suas ‘esquisitices’ – marcantes e inesquecíveis. Assim é que, no pequeno burgo no qual vivi a infância e pré-adolescência nas décadas imediatamente subseqüentes a meados do século passado, a drogaria do meu pai foi terreno fértil a cenas memoráveis –; meu pai que, para os íntimos, modestamente denominava seu comércio de: “uma pequena botica de vender garapas de curar gente”.
Era uma daquelas tardes de outono, quentes, letárgicas e abafadas por nuvens, pesadas e indecisas, a ameaçarem o típico marasmo das horas que entremeavam o burburinho das manhãs de ‘feira livre’ no entorno. Sensação ampliada pelo mormaço que parecia entorpecer a todos e deixar – junto com o cheiro dos remédios – toda a equipe de funcionários praticamente sonâmbula. E, também pelo fato de que o nosso prédio comercial se situava – mais central impossível – junto à praça da igreja católica matriz com o seu dolente sino; percebíamos marcantemente estes contrastes no cotidiano.
O expediente assim prosseguiria não fora a repentina chegada de um suarento cavaleiro campesino; tipo que, na época, era jocosamente chamado pelos citadinos de “matuto das brenhas”. O qual sem demora apeou-se amarrando o resfolegante cavalo em uma das argolas de ferro afixadas e disponibilizadas para tal junto à borda da calçada que nos dava acesso. E, recompondo-se, chamou para o canto do balcão o ‘cochilante’ atendente – escalado pelo costumeiro rodízio da equipe naqueles dias de pouco movimento – e, num sussurro, discretamente solicitou-lhe um sigiloso produto.
O balconista até então entorpecido pelo mormaço e o peso do feijão no ‘bucho’ – associação que é um poderoso sonífero –, despertou e, rodopiando nos calcanhares voltou-se para o interior do recinto, pasmo. A tal ponto que, o antes loquaz vendedor que conhecia de cor o estoque, pela primeira vez ‘gaguejou’ o nome de um produto. E, com uma patética expressão estampada no rosto emoldurando o sorriso sem graça. A seguir engoliu a seco contendo-se e fez vazar algum som pelo canto da boca –; e, o que se ouviu foi o seguinte: “o homem está pedindo um frasco de SARTA PRÁ RIBA DO BICHO”!
Àquela altura o pessoal todo, tentando segurar o riso a todo custo, acudiu em massa para tentar decifrar o medicamentoso enigma; pois, além de socorrer o colega, buscavam manter o brio profissional – mas, segui-se o inevitável ‘bochicho’ e a crescente irritação do freguês. E nós, mais ao fundo, só víamos a formação de um cerco humano no balcão enquanto um par de mãos agitadas sobressaia sobre as cabeças. E, não demorou muito para ecoar a voz do irredutível solicitante que, aos berros exigia repetidamente; “chamem ‘seu’ Duvá, chamem ‘seu’ Duvá!” –, como em ‘matutês’ pronunciava a (senhor) Edward, o nome de meu já falecido e saudoso pai.
Vendo o experiente ‘boticário’ que a tempestade outonal ameaçava cair-lhe com todos os trovões e raios dentro do seu comércio e sobre seus negócios apressou-se em intervir e, em tom protocolar, argüiu sobre as características do medicamento àquele que em meio aos demais já estava na ponta dos pés e com o dedo em reste. Perguntou-lhe sobre a aparência e indicação do produto. Ao que o tipo não contou conversa e foi logo falando em tom conciliador: “óia seu Duvá mi adiscurpi, mai é uma ‘meisinha' (remédio) da cáxa marela cuma cinta azú nu meio, i, quiá cumade Zefa lá da ‘zona’ diche quí cura inté furunco, sífri e quaiqué reima nu sangui -; duença du múndu, u sinhô cumpriende né...?”.
Serenamente meu pai foi às prateleiras e seus conteúdos que minuciosamente conhecia e voltou trazendo o polêmico e tão procurado produto fitoterápico, em cuja embalagem se lia claramente: ‘SALSAPARRILHA DO laboratório BRISTOL – o depurativo do sangue!’ A surpresa foi geral, exceto para aquele de quem finalmente se escutou o vitorioso e orgulhoso comentário: “é pru isso quêu só goxto de falá logo cum santu grandi!”
Finalmente satisfeito o nosso visitante saiu à calçada, estalando na calça de brim ‘azulão’ a ‘tabica’ de cipó-fogo que mantinha sempre consigo. E, olhando o céu buscando assuntar o tempo, desamarrou a montaria que o trouxera e nela subiu; e, cravando-lhe as esporas troteou ligeiro, sumindo na esquina da ladeira que o levava de volta ao campo.
NR: Salsaparrilha; outros nomes: Smilax médica, Smilax officialis, Smilax syphilitica, Smilax peruviana, Monoecia hexandria; da família das Liláceas, tem ainda outros nomes: sarza, salsaparrilha-das-boticas, salsa-americana. No Brasil há muitas espécies de salsaparrilhas conhecidas pelo nome de japecanga. É uma planta depurativa, diurética e sudorífica. E aplica-se nas enfermidades venéreas, exantemas, gota, reumatismo e sífilis.
Fonte: BALBACHAS, Alfonsas. As Plantas Curam, 7ª ed. São Paulo - SP. Ed. Missionária A Verdade Presente – 1959.
União dos Palmares - AL, 09 de novembro de 2008.
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