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segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Iniciação à botica - o acidente

Por George W B Cavalcanti


Ainda menino ouvia atentamente o meu pai contar que, no inicio de sua vida profissional formal, trabalhou em uma – prestigiosa, naqueles tempos – empresa familiar. Era integrada por dois pequenos laboratórios químico-farmacêuticos e dirigidos por dois irmãos alagoanos de São José da Laje, diplomados que eram na especialidade e que, como pioneiros se estabeleceram em Coqueiral, um subúrbio afastado da capital pernambucana.

Além dos ‘pó-secante’ e povilho – para feridas, frieira e sarna –, pomadas de manipulação, pílulas prensadas a mão, emulsões de óleo de fígado de bacalhau e água inglesa para pós-parto; a linha de produtos tinha lá seus “carros chefes” que eram: vermífugos, tônicos reconstituintes, depurativos do sangue, reguladores menstruais e o imbatível xarope ‘defensor do pulmão’ -; garantias de bons resultados para o jovem e promissor ‘pracista’.

Mediante a sua habilidade no trato com a clientela e reconhecida idoneidade, destacou-se na equipe de vendas e foi guindado à condição de ‘interessado’ –; designação oficiosa para um candidato potencial a sócio minoritário. Assumiu, pois, algumas atribuições administrativas na matriz da empresa –; para a alegria particular da minha mãe que, vivia a rezar e a passar a ‘ferro de engomar’ os ternos e os ‘apara-pó’ que integravam o escasso vestuário do marido.

Entenda-se por ‘apara-pó’ uma capa ou batina feita de brim ou bramante com funções de ‘sobretudo’ e indispensável naquelas viagens de trem como proteção contra a fuligem que saia da chaminé da “Maria Fumaça” –; a qual, 'democráticamente' lograva entrar freqüentemente pelas janelas do vagão de poltronas reservadas e encardir toda a roupa de trabalho dos distintos e seletos passageiros. Vale lembrar que tal indumentária geralmente era completada por um lustroso par de sapatos de couro em duas cores e, por um indefectível boné de feltro forrado com cetim, para proteção das cabeleiras fixadas a 'brilhantina'.

Àquela altura a organização farmacêutica já possuía sua pequena rede de boticas no interior do estado alagoano, apresentando desempenho e lucratividade a contento; e, tudo transcorreria de acordo com os conformes não fora um inesperado acontecimento que mudou para sempre o enredo. Aconteceu que, 'não mais do que de repente'- numa das suas idas e vindas por via férrea à sede metropolitana -, o então gerente da drogaria de União dos Palmares, súbita e irremediavelmente, deu lugar ao meu genitor na direção daquela unidade comercial co-irmã.

Tudo se deu porque o infeliz homem – que D’us o tenha! –; foi transitar no espaço de conexão entre os vagões de passageiros; levou um tombo e caiu fora da composição ferroviária em movimento. Naquela época aquele tipo de acidente acontecia aos incautos com alguma regularidade e o tumulto ‘in loco’, segundo relatos, teria sido geral e de grande comoção. Uma vez que os costumeiros ‘expectadores de janela’, percebendo o ocorrido, aos berros deram o alarme e logo puxaram a alça dos freios de emergência –; que, entre outras finalidades, lá estava acessível para ocorrências como aquela.

O tropel vagões afora, diz-se, foi enorme e entre trancos e solavancos da frenagem; ao som agudo de faiscante atrito das pesadas rodas de ferro nos trilho. E, quando finalmente a composição parou em meio a uma nuvem de fuligem e poeira, acudiram todos –; cuida daqui, cuida dali, mas havia perplexidade e tristeza.

Finalmente ouviu-se o soar de um estridente apito; era o fiscal do trem abrindo passagem para o maquinista e o foguista que, adentrando ambos a cena e após alguma constatação sobre o vitimado sentenciaram, balançando negativamente a cabeça: “não tem mais jeito, chamem o ‘rabecão’ porque o passageiro já passou dessa para melhor”.

(continua proximamente)


União dos Palmares - AL, 29 de novembro de 2009.

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